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Erguendo barreiras contra o irracionalismo: História das Ciências e diagnóstico da atualidade em Gaston Bachelard

Gaston Bachelard: Actuality and Modernity of the History of Science

Resumo:

Desde Nietzsche, a tarefa da filosofia tem sido a de fazer diagnósticos da atualidade. Neste artigo, mostraremos como Gaston Bachelard articulou, via Nietzsche, essa preocupação com o presente - típica da filosofia moderna - em sua reflexão sobre a teoria e o método da História das Ciências. Em outras palavras, mostraremos como, na obra de Bachelard, o diagnóstico da atualidade se tornou uma tarefa filosófica dos historiadores.

Palavras-chave:
Bachelard; Nietzsche; História das Ciências

Abstract:

Since Nietzsche, the task of philosophy has been to make diagnoses of the present. In this article, we show how Gaston Bachelard articulated, through Nietzsche, this preoccupation with the present - typical of modern philosophy - in his reflection on the theory and method of the History of Science, in other words, we show that, through the work of Bachelard, diagnosis has become a philosophical task for historians.

Keywords:
Bachelard; Nietzsche; History of Science

História como diagnóstico: um problema moderno 1 1 Esse primeiro tópico do artigo parte do argumento, aqui resumido, defendido no último capítulo de Almeida, 2018a.

No artigo “A Vida: a Experiência e a Ciência” - versão modificada do prefácio que Michel Foucault escreveu para a edição estadunidense de Le normal et le pathologique, de Georges Canguilhem, publicada em 1985 no número da Revue de métaphysique et de morale dedicada ao médico, filósofo e historiador das ciências francês -, lemos que “a história das ciências deve sua dignidade filosófica ao fato de ela colocar em ação um dos temas que foi introduzido, de maneira sem dúvida um pouco sub-reptícia e como por acidente, na filosofia do século XVIII”. Tal questão, segundo Foucault, podia ser resumida na pergunta feita pela Berlinische Monatsschrift e que motivou um dos mais conhecidos textos de Kant: Was ist Aufklärung?. Naquele momento, pela primeira vez, ainda segundo Foucault, o pensamento racional era questionado “não somente sobre sua natureza, seu fundamento, seus poderes e direitos, mas sobre sua história e sua geografia, sobre seu passado imediato e suas condições de exercício, sobre seu momento, lugar e atualidade” (Foucault, 2005FOUCAULT, Michel. A vida: a experiência e a ciência. In: FOUCAULT, Michel. Arqueologia das ciências e história dos sistemas de pensamento. Manoel Barros da Motta (org.). Tradução de Elisa Monteiro. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005. p. 352-366. (Ditos e Escritos, II)., p. 355).

Já em “O que são as Luzes?”, texto de 1984, Foucault argumenta que Kant, em sua resposta àquela pergunta, coloca a questão do esclarecimento de uma maneira completamente diferente dos outros filósofos que se impuseram a tarefa de refletir sobre seu próprio presente: “nem uma época do mundo à qual se pertence, nem um acontecimento do qual se percebe os sinais, nem a aurora de uma realização. Kant define a Aufklärung de uma maneira quase inteiramente negativa” (Foucault, 2005aFOUCAULT, Michel. O que são as Luzes. In: FOUCAULT, Michel. Arqueologia das ciências e história dos sistemas de pensamento. Manoel Barros da Motta(org.). Tradução de Elisa Monteiro. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005a. p. 335-351. (Ditos e Escritos, II)., p. 337). A Aufklärung é definida negativamente como uma “saída” do estado de menoridade em que nos encontramos voluntariamente, por aceitarmos a autoridade de outros em matérias em que deveríamos fazer uso da nossa própria razão, permitindo, graças a esse uso ilegítimo da razão, o surgimento da ilusão e do dogmatismo. Saída, segundo Foucault, que não deixa de ser ambígua, pois sua divisa, “aude saper”, significa que a Aufklärung deve ser entendida ao mesmo tempo como um processo em vias de se desenrolar, mas também como uma tarefa, uma obrigação pessoal num processo coletivo. Aí, segundo Foucault, notamos uma inflexão na reflexão sobre a “atualidade”, que seria o primeiro esboço daquilo que chamou de “atitude de modernidade” (Foucault, 2005aFOUCAULT, Michel. O que são as Luzes. In: FOUCAULT, Michel. Arqueologia das ciências e história dos sistemas de pensamento. Manoel Barros da Motta(org.). Tradução de Elisa Monteiro. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005a. p. 335-351. (Ditos e Escritos, II)., p. 341).

A atitude de modernidade, inaugurada por Kant, consistiu em tornar a atualidade, entendida historicamente, um dos problemas maiores da filosofia, ou seja, a questão do “momento presente” se transformou, pela história, “em uma interrogação da qual ela [a filosofia] não pode mais se separar” (Foucault, 2005FOUCAULT, Michel. A vida: a experiência e a ciência. In: FOUCAULT, Michel. Arqueologia das ciências e história dos sistemas de pensamento. Manoel Barros da Motta (org.). Tradução de Elisa Monteiro. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005. p. 352-366. (Ditos e Escritos, II)., p. 355). Foucault explica que a Aufklärung, assim entendida, teve destinos diferentes em diferentes tradições filosóficas: se na Alemanha, por exemplo, foi a Escola de Frankfurt que lhe “deu corpo em uma reflexão histórica e política sobre a sociedade”, ele diz, “na França, foi sobretudo a história das ciências que serviu de suporte para a questão filosófica sobre o que tinha sido a Aufklärung” (Foucault, 2005FOUCAULT, Michel. A vida: a experiência e a ciência. In: FOUCAULT, Michel. Arqueologia das ciências e história dos sistemas de pensamento. Manoel Barros da Motta (org.). Tradução de Elisa Monteiro. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005. p. 352-366. (Ditos e Escritos, II)., p. 355):

Há um século e meio, a história das ciências traz em seu bojo as apostas filosóficas que são facilmente reconhecidas. Obras como as de Koyré, Bachelard, Cavaillès ou Canguilhem podem ter como centro de referência domínios bem precisos, regionais, cronologicamente bem determinados da história das ciências, e elas funcionaram como focos importantes de elaboração filosófica, à medida que faziam atuar, sob diferentes facetas, essa questão da Aufklärung, essencial para a filosofia contemporânea. (Foucault, 2005FOUCAULT, Michel. A vida: a experiência e a ciência. In: FOUCAULT, Michel. Arqueologia das ciências e história dos sistemas de pensamento. Manoel Barros da Motta (org.). Tradução de Elisa Monteiro. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005. p. 352-366. (Ditos e Escritos, II)., p. 356)

Neste artigo, pretendemos mostrar uma dessas “diferentes facetas” sob a qual atuou a História das Ciências na França, a saber, a retomada, por Gaston Bachelard, daquela atitude de modernidade que encontramos em Kant, porém reformulada por Friedrich Nietzsche. Segundo Foucault, “pelo menos desde Nietzsche, a filosofia tem o diagnóstico por tarefa e não busca mais dizer uma verdade que possa valer para todos e por todo o tempo” (Foucault, 2001FOUCAULT, Michel. Qui êtes-vous, professeur Foucault. In: FOUCAULT, Michel. Dits et écrits I. 1954-1975. Paris: Gallimard, 2001., p. 634). Contrariando a leitura que identifica na genealogia a recusa do projeto filosófico da modernidade, podemos entender como essa tarefa filosófica inaugurada por Nietzsche - e, defendemos, assumida por Bachelard - continua e aprofunda o projeto crítico, desde que o entendamos, nas palavras de David Owen, como “a busca da maturidade através da reflexão sobre a modernidade, onde essa reflexão é articulada via uma reconstrução histórica do nosso ser no presente” (Owen, 1994OWEN, David. Maturity and Modernity: Nietzsche, Weber, Foucault and the Ambivalence of Reason. London: Routledge, 1994., p. 1). Nesses termos, é possível determinar que a forma da crítica pós-kantiana é caracterizada por três perguntas: “O que é maturidade?”, “O que é a modernidade?”, “Qual a relação entre maturidade e modernidade?”. Isso nos permite afirmar que, pelo fato de rejeitar o programa hegeliano (que compreende a maturidade como realização do ser enquanto agente ético e a modernidade como reconciliação da razão consigo mesma, logo, a maturidade como “telos” da modernidade), Nietzsche não representa uma inflexão rumo à pós-modernidade: ele é o sinal de uma bifurcação e um aprofundamento na forma da crítica. Pois Nietzsche também se fará aquelas três perguntas, mas, para ele, a maturidade deve ser compreendida como um processo de transvaloração, de superação, e a modernidade como o momento de autoproblematização da “vontade para a verdade” que enseja uma crítica histórica da razão, demonstrando de que forma a modernidade ao mesmo tempo cria e impede as possibilidades da maturidade.

É essa reflexão crítica sobre a “atualidade” (que caracteriza a atitude de modernidade) sob a forma de uma nova tarefa para a filosofia (o diagnóstico) que caracteriza a historiografia das ciências de Gaston Bachelard. Vejamos como Bachelard apresenta essa atitude já em O novo espírito científico, de 1934, para descrever o programa do seu livro:

Poremos em evidência uma espécie de generalização polêmica que faz a razão do por que ao por que não. Colocaremos a paralogia ao lado da analogia e demonstraremos que a antiga filosofia do como se é substituída, em filosofia científica, pela filosofia do por que não. Para usar a expressão de Nietzsche: tudo o que é decisivo só nasce apesar de. Isto é tão verdadeiro no mundo do pensamento quanto no mundo da ação. Toda e qualquer verdade nova nasce apesar da evidência, toda e qualquer experiência nova nasce apesar da experiência imediata. (Bachelard, 1974BACHELARD, Gaston. A filosofia do não: filosofia do novo espírito científico. Tradução de Joaquim José Moura Ramos. São Paulo: Abril, 1974. (Os Pensadores, XXVIII).a, p. 93)

Para Bachelard, as intuições extraídas das experiências imediatas constituem verdadeiros obstáculos epistemológicos ao espírito científico, isto é, são causas de estagnação e até de regressão incrustados no conhecimento não questionado: “Na formação do espírito científico, o primeiro obstáculo é a experiência primeira, a experiência colocada antes e acima da crítica - crítica esta que é, necessariamente, elemento integrante do espírito científico” (Bachelard, 1996BACHELARD, Gaston. A formação do espírito científico: contribuição para uma psicanálise do conhecimento. Tradução de Estela dos Santos Abreu. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996., p. 27). A experiência primeira, o substancialismo, o realismo, o animismo, o pragmatismo e todos os outros obstáculos dos quais Bachelard fornece a cuidadosa descrição em A formação do espírito científico são sinais da permanência do senso comum - o pensamento não submetido à crítica racional - no pensamento científico. Para Bachelard, “mesmo na mente lúcida, há zonas obscuras, cavernas onde ainda vivem sombras. Mesmo no novo homem, permanecem vestígios do homem velho. Em nós, o século XVIII prossegue sua vida latente; infelizmente pode até voltar”. Porém, ao contrário dos chamados “filósofos do imobilismo” (cf. Barbosa; Bulcão, 2011BARBOSA, Elyana; BULCÃO, Marly. Bachelard: pedagogia da razão, pedagogia da imaginação. 2. ed.Petrópolis: Vozes, 2011.), Bachelard não deduziu desses vestígios de devaneios primitivos a existência de uma Razão hegemônica que segue tranquila e continuamente do senso comum ao pensamento científico:

Não vemos nisso, como Meyerson, uma prova da permanência e da fixidez da razão humana, mas antes a prova da sonolência do saber, prova da avareza do homem erudito que vive ruminando o mesmo conhecimento adquirido, a mesma cultura, e que se torna, como todo avarento, vítima do ouro acariciado. Mostraremos, de fato, a endosmose abusiva do assertórico no apodítico, da memória na razão (Bachelard, 1996BACHELARD, Gaston. A formação do espírito científico: contribuição para uma psicanálise do conhecimento. Tradução de Estela dos Santos Abreu. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996., p. 10).

Bachelard era um atento leitor de Nietzsche. A partir da década de 1930 - notadamente com O novo espírito científico, de 1934, A formação do espírito científico e A psicanálise do fogo, ambos de 1938 -, encontramos referências a Nietzsche em praticamente todos os seus livros. Trechos de Aurora, Crepúsculo dos Ídolos, Assim falou Zaratustra, Humano, demasiado humano, Ecce Homo e O Anticristo são recorrentes na obra de Bachelard, um claro movimento de filiação. No trecho citado, Bachelard fala daquilo que Nietzsche chamou de “racionalidade a posteriori” - “Todas as coisas que vivem muito tempo embebem-se gradativamente de razão, a tal ponto que sua origem na desrazão torna-se improvável”, escreveu o filósofo alemão em Aurora. “Quase toda história exata de uma gênese não soa paradoxal e ultrapassada para nosso sentimento? O bom historiador não contradiz continuamente, no fundo?” (Nietzsche, 2004NIETZSCHE, Friedrich. Aurora: reflexões sobre os pensamentos morais. Tradução de Paulo César Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2004., I, §1). Poderia falar também do “egipcismo” dos filósofos: “Vocês me perguntam o que é idiossincrasia nos filósofos?”. O próprio Nietzsche responde: “Sua falta de sentido histórico, seu ódio à noção mesma do vir-a-ser, seu egipcismo. Eles acreditam fazer uma honra a uma coisa, quando a des-historicizam, sub specie aeterni [sob a perspectiva da eternidade] - quando fazem dela uma múmia” (Nietzsche, 2006LEBRUN, Gérard. A idéia de epistemologia. In: LEBRUN, Gérard. A filosofía e sua história. Trad. de Maria Adriana Camargo Cappello. São Paulo: Cosac Naify, 2006. p. 129-144., III, §1).

Insistimos, antes de tudo, que é necessário marcar, em 1938, a emergência na obra de Bachelard daquela “atitude de modernidade”, que para fazer a crítica da atualidade exige antes o seu diagnóstico, e que caracteriza a filosofia crítica pós-kantiana, mas já transformada graças à intervenção de Nietzsche. É Foucault, mais uma vez, que trazemos para explicar tal transformação. Para ele, se, em Kant, a crítica exercia-se sob a forma de “limitação necessária”, isto é, a investigação sobre os limites do conhecimento, com Nietzsche, ela se transforma em uma “crítica prática das formas de ultrapassagem possível” (Foucault, 2005aFOUCAULT, Michel. O que são as Luzes. In: FOUCAULT, Michel. Arqueologia das ciências e história dos sistemas de pensamento. Manoel Barros da Motta(org.). Tradução de Elisa Monteiro. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005a. p. 335-351. (Ditos e Escritos, II)., p. 348). Com Nietzsche, diz Foucault, a investigação crítica sobre a atualidade que caracteriza a atitude de modernidade “vai se exercer não mais na pesquisa das estruturas formais que têm valor universal, mas como pesquisa histórica através dos acontecimentos que nos levaram a nos constituir como sujeitos do que fazemos, pensamos, dizemos” (Foucault, 2005aFOUCAULT, Michel. O que são as Luzes. In: FOUCAULT, Michel. Arqueologia das ciências e história dos sistemas de pensamento. Manoel Barros da Motta(org.). Tradução de Elisa Monteiro. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005a. p. 335-351. (Ditos e Escritos, II)., p. 348). De fato, já em 1934, no artigo “Critique préliminaire du concept de frontière épistémologique”, Bachelard recorreu a Nietzsche para transformar a questão crítica, negando a legitimidade de uma investigação sobre os limites do conhecimento tal como realizada pela filosofia da ciência de sua época:

O conceito de limite do conhecimento científico tem um sentido absoluto? É possível traçar as fronteiras do pensamento científico? Estamos realmente encarcerados num domínio objetivamente fechado? Somos escravizados por uma razão imutável? O espírito é um tipo de instrumento orgânico, invariável como a mão, limitado como a visão? Ela é forçada, pelo menos, a uma evolução regular em ligação com uma evolução orgânica? Eis as questões, múltiplas e conexas, que põem em jogo toda uma filosofia e que devem conferir um interesse primordial ao estudo dos progressos do pensamento científico. (Bachelard, 2002BACHELARD, Gaston. Critique préliminaire du concept de frontière épistémologique. In: BACHELARD, Gaston. Études. 2. ed. Paris: Librairie Philosophique J. Vrin, 2002. cap. IV, p. 69-76. (Bibliotèque des textes philosophiques)., p. 69)

A Epistemologia só se tornou possível no momento em que atribuímos às ciências particulares a responsabilidade pela formação dos seus próprios critérios de racionalidade, isto é, quando libertamos a ciência da Razão metafísica (cf. Almeida, 2018ALMEIDA, Tiago Santos. Aventuras e estratégias da razão: Sobre a historicização da epistemologia na França. Varia história, Belo Horizonte: UFMG, v. 34, n. 66, p. 765-790, 2018.). Da mesma forma, segundo Bachelard, “apenas a ciência está habilitada a traçar suas próprias fronteiras” (Bachelard, 2002BACHELARD, Gaston. Critique préliminaire du concept de frontière épistémologique. In: BACHELARD, Gaston. Études. 2. ed. Paris: Librairie Philosophique J. Vrin, 2002. cap. IV, p. 69-76. (Bibliotèque des textes philosophiques)., p. 71). A fronteira que os filósofos tentam impor às ciências é, em geral, “a marca de um problema mal colocado” em que se pode localizar a impossibilidade de resolução no próprio domínio do problema, diz Bachelard, ainda em “Critique préliminaire du concept de frontière épistémologique”. Se as ciências não podem conhecer as essências - a coisa em si -, não deveríamos supor uma limitação científica, mas uma limitação filosófica, por vezes reforçada pela crença na possibilidade de conhecimentos mais profundos a partir da intuição; uma limitação que tenta impor às ciências questões que não pertencem a ela. Trata-se, em suma, de superar o obstáculo epistemológico sobre a “experiência primeira”, suposta via para o conhecimento do real e que marca tão profundamente a solidariedade entre o senso comum e a filosofia realista. “É preciso minar por todas as partes as limitações iniciais, reformar o conhecimento não científico que sempre entrava o conhecimento científico”, diz Bachelard. “A filosofia científica deve a todo custo destruir sistematicamente os marcos que a filosofia tradicional impôs à ciência” (Bachelard, 2002BACHELARD, Gaston. Critique préliminaire du concept de frontière épistémologique. In: BACHELARD, Gaston. Études. 2. ed. Paris: Librairie Philosophique J. Vrin, 2002. cap. IV, p. 69-76. (Bibliotèque des textes philosophiques)., p. 76).

Quando aceitamos que o vértice do conhecimento científico contemporâneo parte de um racionalismo que desdiz programaticamente a experiência sensível, Bachelard argumenta, percebemos facilmente o equívoco por trás do conceito de limite do conhecimento, tal como colocado pelos filósofos da ciência até aquele momento, não sem consequências para a historiografia das ciências. O racionalismo das ciências contemporâneas, para Bachelard, é o traço inconfundível do poder de transcendência do pensamento científico em relação ao seu estágio atual. Quando analisamos a história das ciências, diz Bachelard, percebemos que há muito tempo as fronteiras da observação primitiva perderam todo valor para compreensão da experiência, mas permanecem na filosofia científica por uma espécie de força abusiva da memória sobre a razão. Mas o pensamento científico “é por essência um pensamento em vias de assimilação, um pensamento que tenta as transcendências, que supõe a realidade antes de conhecê-la e que só a conhece enquanto uma realização da sua suposição” (Bachelard, 2002BACHELARD, Gaston. Critique préliminaire du concept de frontière épistémologique. In: BACHELARD, Gaston. Études. 2. ed. Paris: Librairie Philosophique J. Vrin, 2002. cap. IV, p. 69-76. (Bibliotèque des textes philosophiques)., p. 70).

De fato, para provar que o conhecimento científico é limitado, não é necessário demonstrar sua incapacidade para resolver certos problemas, fazer certas experiências, realizar certos sonhos humanos. É preciso poder circunscrever inteiramente o campo de conhecimento, desenhar um limite contínuo intransponível, marcar uma fronteira que toque verdadeiramente o domínio limitado. Sem essa última precaução, nós podemos dizer agora que a questão da fronteira do conhecimento científico não possui nenhum interesse para a ciência. (Bachelard, 2002BACHELARD, Gaston. Critique préliminaire du concept de frontière épistémologique. In: BACHELARD, Gaston. Études. 2. ed. Paris: Librairie Philosophique J. Vrin, 2002. cap. IV, p. 69-76. (Bibliotèque des textes philosophiques)., p. 70)

Assim compreendida, a fronteira científica não é um limite, “mas uma zona de pensamentos particularmente ativos, um domínio de assimilação”, ou seja, “cientificamente, a fronteira do conhecimento parece marcar apenas uma pausa momentânea do pensamento” (Bachelard, 2002BACHELARD, Gaston. Critique préliminaire du concept de frontière épistémologique. In: BACHELARD, Gaston. Études. 2. ed. Paris: Librairie Philosophique J. Vrin, 2002. cap. IV, p. 69-76. (Bibliotèque des textes philosophiques)., p. 75). Para Bachelard, desde que não se trate de um problema imaginário, será preciso um programa racional para superar um obstáculo ao conhecimento. E se for um problema imaginário, Bachelard defende, o desenvolvimento da ciência em sua tentativa de resolvê-lo tratará, por fim, de fazer a sua denúncia à medida que reforma o pensamento. É por isso que, no artigo “L’idéalisme discursif”, também de 1934, Bachelard argumenta que a toda história das ciências será preciso acrescentar uma história psicológica, ou seja, uma história da razão tal como ela se apresenta na atualidade.

Pode-se objetar que, assim descrita, a História das Ciências, longe de exibir qualquer marca nietzschiana, apenas dava continuidade ao projeto hegeliano de história da Razão. Como reforço do argumento, seria possível lembrar que, para Bachelard, a história do conhecimento científico e a história da razão progridem através daquilo que ele descreveu como uma “dialética” dos obstáculos epistemológicos e dos atos epistemológicos. Mas, em A filosofia do não, Bachelard se apressa em esclarecer que sua epistemologia “não tem nada a ver com uma dialética a priori. Em particular, ela não pode de forma alguma mobilizar-se em torno das dialéticas hegelianas” (Bachelard, 1974BACHELARD, Gaston. A filosofia do não: filosofia do novo espírito científico. Tradução de Joaquim José Moura Ramos. São Paulo: Abril, 1974. (Os Pensadores, XXVIII)., p. 82).2 2 Canguilhem comentou a passagem: “Essa declaração de Gaston Bachelard condenou, daí em diante e até depois da sua morte, toda tentativa de interpretação de seu pensamento para fins de confirmação de tal ou tal dialética da Ideia, da História ou da Natureza. O que Bachelard chama de dialética é o movimento indutivo que reorganiza o saber alargando as suas bases, onde a negação dos conceitos e dos axiomas é apenas um aspecto da sua generalização. A partir daí, Bachelard chama essa retificação dos conceitos de envolvimento ou inclusão, bem como superação. Oscar Wilde disse que a imaginação imita e que só o espírito crítico cria. Bachelard pensava que só uma razão crítica pode ser arquitetônica” (CANGUILHEM, 2002, p. 196). A história das ciências a partir de Bachelard não se contenta em ser apenas uma descrição da autorrealização da razão, a cronologia da sua marcha rumo a um telos, do qual a atualidade seria um estágio intermediário ou seu ponto final (como pretendia o positivismo). Bachelard pretendia que o trabalho do historiador das ciências começasse pelo diagnóstico do estado atual dos nossos conhecimentos, isto é, pelo diagnóstico daquilo que nós somos hoje, para, em seguida, buscar entender como pudemos chegar até aqui, mas apenas para estabelecer formas de ultrapassagem possível, informar à cultura científica de que maneira podemos nos libertar dos obstáculos sedimentados pelo passado que, ao mesmo tempo, permite e bloqueia a ciência atual, pois as verdades científicas são constituídas sob um fundo de “erros espirituais” que determinam nossa forma de relação com a matéria.

Teoria da revolução permanente: o surracionalismo

Não acreditamos estar forçando o argumento ao aproximarmos, por meio de uma protoideia (em sentido fleckiano - cf. Fleck, 2010FLECK, Ludwik. Gênese e desenvolvimento de um fato científico: introdução à doutrina do estilo de pensamento e do coletivo de pensamento. Tradução de Mariana Camilo de Oliveira e Georg Otte. Belo Horizonte: Fabrefactum, 2010.), a teoria bachelardiana da história das ciências e a genealogia nietzschiana, na medida em que, tal como explica Foucault, “ela [a genealogia] não deduzirá da forma do que somos o que para nós é impossível fazer ou conhecer” - como pretendia a crítica kantiana -, “mas deduzirá na contingência que nos fez ser o que somos a possibilidade de não mais ser, fazer ou pensar o que somos, fazemos ou pensamos” (Foucault, 2005aFOUCAULT, Michel. O que são as Luzes. In: FOUCAULT, Michel. Arqueologia das ciências e história dos sistemas de pensamento. Manoel Barros da Motta(org.). Tradução de Elisa Monteiro. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005a. p. 335-351. (Ditos e Escritos, II)., p. 348). Mas uma história das ciências que convoque incessantemente à transformação do pensamento precisou, necessariamente, revisar o papel do “erro” no interior de sua teoria. Após a morte de Comte, seus discípulos positivistas passaram a criticar a história das ciências, argumentando que ela não passava de um museu de erros do passado e que, portanto, não teria como contribuir nem com a pedagogia, nem com o desenvolvimento do pensamento científico. Com Bachelard, sob uma perspectiva racionalista, o erro passa a ter função positiva na história das ciências, pois quando ele é ultrapassado (por resolução ou abandono) pela ciência que foi chamada a enfrentá-lo, é o próprio espírito científico que se retifica e reafirma a condição radicalmente histórica do seu presente e do seu futuro.

Ao tomar consciência de meu erro objetivo, eu tomo consciência de minha liberdade de orientação. Essa orientação liberada e refletida é a viagem potencial fora do eu, em busca de um novo destino espiritual. Eu me enganei sobre as coisas. Eu não sou, portanto, aquilo que eu acreditava ser. Um erro no meu julgamento objetivo é um vício de constituição, uma deficiência de minha própria realidade substancial. Porém, uma vez retificado, esse erro objetivo fornece o plano de uma construção íntima que diz respeito ao próprio sujeito. Experimentando a retificação objetiva do conhecimento, o sujeito tem a revelação de seu próprio poder e da possibilidade de um devir espiritual. Assim, a primeira ilusão reconhecida como tal abre uma dupla perspectiva infinita: o mundo aparece doravante como o polo de uma objetivação, o espírito como o polo de uma espiritualização. (Bachelard, 2002BACHELARD, Gaston. Critique préliminaire du concept de frontière épistémologique. In: BACHELARD, Gaston. Études. 2. ed. Paris: Librairie Philosophique J. Vrin, 2002. cap. IV, p. 69-76. (Bibliotèque des textes philosophiques).a, p. 83)

Como definir esse sujeito que, por uma função espiritual, não cessa de se voltar contra si mesmo e de se deformar na sequência de uma conquista científica? “Isso só é possível se perseguimos até o limite essa deformação: eu sou o limite das minhas ilusões perdidas”, afirmou Bachelard (2002BACHELARD, Gaston. Critique préliminaire du concept de frontière épistémologique. In: BACHELARD, Gaston. Études. 2. ed. Paris: Librairie Philosophique J. Vrin, 2002. cap. IV, p. 69-76. (Bibliotèque des textes philosophiques).a, p. 85). Mas isso não significa que, ao se retificarem, as ciências revelam a razão a si mesma. Não se trata de uma nova arquitetônica: a razão não é. Mas, diferente do que acontece na filosofia de Léon Brunschvicg, ela também não vem a ser aquilo que ela é: ela se torna. “O que é não se torna, o que se torna não é”, como disse Nietzsche (2006NIETZSCHE, Friedrich. Crepúsculo dos ídolos. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2006., III, §1). Na filosofia histórica de Bachelard, o sujeito toma consciência de que muito do que se apresentava como universal e necessário ao pensamento não passa de uma contingência transformada em hábito. O erro não instrui o sujeito lhe dizendo o que ele é em essência: ao errar, o sujeito toma consciência de que é livre, ou seja, que ele pode ser outra coisa além daquilo que ele é hoje. “O espírito se revela como um ser a instruir, dito de outra forma, como um ser a criar. O conhecimento se dinamiza a partir da sua própria historicidade”, escreveu Bachelard (2002BACHELARD, Gaston. Critique préliminaire du concept de frontière épistémologique. In: BACHELARD, Gaston. Études. 2. ed. Paris: Librairie Philosophique J. Vrin, 2002. cap. IV, p. 69-76. (Bibliotèque des textes philosophiques).a, p. 80). A esse movimento, ele deu o nome de “Surracionalismo”.

A partir do tema do surracionalismo, reencontramos Nietzsche, cuja recepção na França está ligada (não exclusivamente) a um ato “revolucionário” no campo da Arte: o Surrealismo - os nomes de Georges Bataille, principalmente, e Pierre Klossowski vêm logo à memória.3 3 Do prefácio de José Thomaz Brum a Klossowski, 2000, p. 8: “Com Bataille, Klossowski participa da fundação do famoso Collège de Sociologie e, sobretudo, do nº 2 da revista Acéphale, de janeiro de 1937, que se intitula ‘Nietzsche et les fascistes - une réparation’. Neste número importante, Klossowski, Jean Wahl, Bataille e outros defendem veementemente Nietzsche de sua recuperação pela ideologia fascista”. Antes, em 1935, Klossowski, ao lado de Bataille e André Breton, brevemente reconciliados após a dissolução da revista La Revolution surrealiste no final dos anos 1920 - que opôs a Association, de Breton (que havia se filiado ao Partido Comunista, com outros importantes surrealistas), e o Cercle Communiste Démocratique, de Bataille -, fundaram o efêmero movimento surrealista anti-stalinista Contre-Attaque (Union de lutte des intellectuels révolutionnaires), que faz parte da história do encontro (ou choque) entre Marx e Nietzsche na filosofia francesa, dissolvido em função das contradições internas entre um projeto de crítica trotskista, por parte de Breton, e outro voltado para uma estética de si, com Bataille. Essa questão não pode encontrar seu devido espaço neste artigo e, de qualquer forma, muito já foi dito sobre a absorção do projeto filosófico nietzschiano de transvaloração de todos os valores no programa surrealista. Entretanto, no que diz respeito aos débitos do surracionalismo bachelardiano com a filosofia de Nietzsche, ainda são poucos os trabalhos que tratam essa questão como algo mais que uma simples curiosidade. O fato não deixa de ser impressionante, pois, justamente no artigo Le surrationalisme, de 1936, publicado como editorial da revista surrealista Inquisitions,4 4 Revista editada por Louis Aragon, Tristan Tzara, Roger Caillois e Jules Monnerot. A esse respeito, cf. Caws, 1966. Nietzsche é a única referência filosófica apresentada por Bachelard:

Toda descoberta real determina um método novo, ela deve arruinar um método anterior. Dito de outra forma, no reino do pensamento, a imprudência é um método. Só a imprudência pode obter um sucesso. É preciso ir o mais rápido possível na região da imprudência intelectual. Nietzsche reconheceu tanto o caráter tardio quando o caráter metodológico das sãs transformações. “As percepções mais valiosas são as últimas; mas as percepções mais valiosas são os métodos” (O Anticristo, §13). São suspeitos os conhecimentos longamente manipulados, pacientemente justapostos, conservados de modo avarento. Eles portam o signo maléfico da prudência, do conformismo, da constância, da lentidão. (Bachelard, 1972BACHELARD, Gaston. L’actualité de l’histoire des sciences. In: BACHELARD, Gaston. L’engagement rationaliste. Paris: PUF, 1972. (Bibliothèque de Philosophie Contemporaine).b, p. 11)

Sabemos que a figura do Pai, como grande símbolo do poder repressor, sempre foi alvo do Surrealismo (Artaud, 1980ARTAUD, Antonin. Messages révolutionnaires. In: ARTAUD, Antonin. Oeuvres, t. II. Paris: Gallimard, 1980. p. 141-142., p. 141). “Pai, Pátria, Patrão”, correlatos da mesma imagem de coerção, “tal é a trilogia que serve de base à velha sociedade patriarcal e, hoje, à cainçalha fascista”, escreveram Bataille, Klossowski e Breton em seu manifesto Contre l’abandon de la position révolutionnaire. Não insistiremos sobre as críticas programáticas dos surrealistas, publicadas nas páginas de La Revolution surrealiste, aos reitores das universidades europeias, ao Papa e aos médicos5 5 Os exemplos citados, Adresse au Pape, de Antonin Artaud, Lettre aux Recteurs des Universités Européennes, de Artaud e Michel Leiris, e Lettres aux Médecins-chefs des asiles de fous, de Robert Desnos e Théodore Fraenkel, foram publicados no nº 3, de 1925, de La Révolution surrealiste, intitulado “1925: Fin de l’ère crétienne”. - não por acaso, as mesmas figuras que Kant evoca em seu Was ist Aufklärung? para explicar o estado de menoridade em que se encontram os homens - senão para dizer que eles também são correlatos da figura opressora do Pai. E quanto ao Surracionalismo? Ele é sobretudo uma atitude de engajamento. “O engajamento racionalista é uma revolução permanente. A semelhança do surracionalismo com o surrealismo não é simplesmente onomatológica”, alertou Canguilhem (1972CANGUILHEM, Georges. Préface. In: BACHELARD, Gaston. L’engagement rationaliste. Paris: PUF, 1972. p. 27-34. (Bibliothèque de Philosophie Contemporaine)., p. 6). O próprio André Breton o reconhece, tendo até incluído o verbete “Surracionalismo” em seu dicionário do surrealismo: “É preciso admitir que o surrealismo se acompanha necessariamente de um surracionalismo (a palavra é do Sr. Gaston Bachelard) que o repete e o avalia” (Breton, 2005BRETON, André. Dictionnaire abrégé du surréalisme. Paris: Librairie José Corti, 2005., p. 26). De fato, escreveu Bachelard (1943BACHELARD, Gaston. L’air et les songes: Essai sur l’imagination du mouvement. Paris: Jose Corti, 1943., p. 127), “a transmutação nietzschiana dos valores morais envolve o ser inteiro”. Ela envolve também a Razão. Pois é contra uma sombra paterna que, reivindicando a filosofia nietzschiana, se volta a revolução surracionalista: engajamento contra a Razão kantiana, contra o “olhar egoisticamente benévolo de genitor” que ela lança sobre as ciências particulares, para retomar uma bela expressão de Gérard Lebrun (2006LEBRUN, Gérard. A idéia de epistemologia. In: LEBRUN, Gérard. A filosofía e sua história. Trad. de Maria Adriana Camargo Cappello. São Paulo: Cosac Naify, 2006. p. 129-144., p. 133).

Num movimento de inspiração nietzschiana, Bachelard afirma, já nas primeiras linhas de “Le surrationalisme”, que é o uso prolongado, não a verdade, que torna as ideias mais claras ao espírito:

Quase sempre nós confundimos a ação decisiva da razão com o recurso monótono às certezas da memória. Aquilo que nós sabemos bem, que nós experimentamos muitas vezes, que repetimos fielmente, facilmente, calorosamente, nos dá uma impressão de coerência objetiva e racional. O racionalismo adquire então um pequeno gosto escolar. Ele é elementar e penoso, alegre como uma porta de prisão, acolhedor como uma tradição. Foi por estar vivendo no “subsolo” como se fosse uma prisão espiritual que Dostoievski pôde escrever, desconhecendo o verdadeiro sentido da razão viva: “A razão conhece apenas aquilo que ela obteve sucesso em aprender”. E, no entanto, para pensar, nós teríamos, primeiro, tantas coisas a desaprender! (Bachelard, 1972BACHELARD, Gaston. L’actualité de l’histoire des sciences. In: BACHELARD, Gaston. L’engagement rationaliste. Paris: PUF, 1972. (Bibliothèque de Philosophie Contemporaine).b, p. 7)

Em A formação do espírito científico, Bachelard comentou a longa disputa que, no século XVIII, opôs os adeptos da teoria da trituração e os adeptos da teoria da fermentação na digestão estomacal. Boerhaave, defensor da trituração, cita, não como simples exemplo, mas como argumento, um versículo da Bíblia, uma parábola em que são Paulo usou o tema. “O peso da tradição traz a uma experiência substancial um valor suplementar que não cabe na formação do espírito deveras científico”, afirmou Bachelard (1996GAYON, Jean. Bachelard et l’histoire des sciences. In: WUNENBURGER, Jean-Jacques (org.). Bachelard et l’epistemologie française. Paris: Presses Universitaires de France, 2003. p. 51-114. (Débats Philosophiques)., p. 155). O surracionalismo, por sua vez, representa o dinamismo da razão que a todo instante se volta contra si. Para Bachelard, é a razão polêmica, não a razão arquitetônica, que marca o novo espírito científico. “É preciso conduzir a razão a duvidar não apenas da sua obra, mas também a se dividir sistematicamente em cada uma das suas atividades. Logo, é preciso devolver à razão humana sua função de turbulência e de agressividade”, afirmou (Bachelard, 1972bBACHELARD, Gaston. Le surrationalisme. In: BACHELARD, Gaston. L’engagement rationaliste. Paris: PUF, 1972b. p. 7-11. (Bibliothèque de Philosophie Contemporaine)., p. 7). E continuou: “Quando esse surracionalismo tiver encontrado sua doutrina, ele poderá ser colocado em relação com o surrealismo, pois a sensibilidade e a razão serão devolvidas, uma e outra, juntas, à sua fluidez” (Bachelard, 1972bBACHELARD, Gaston. Le surrationalisme. In: BACHELARD, Gaston. L’engagement rationaliste. Paris: PUF, 1972b. p. 7-11. (Bibliothèque de Philosophie Contemporaine)., p. 7).

O surracionalismo, assim como o surrealismo, se coloca a serviço da revolução, da transmutação dos valores, da ruptura com a tradição. “Nós organizamos um espírito científico sobre bases simples, sobre bases históricas, esquecendo que a história científica é, como toda história, a narração das infelicidades da razão, das lutas ilusórias contra as ilusões”, afirmou Bachelard. Assim, “para avançar, foi necessário abandonar as experiências adquiridas, ir contra as ideias reinantes” (Bachelard, 1972bBACHELARD, Gaston. Le surrationalisme. In: BACHELARD, Gaston. L’engagement rationaliste. Paris: PUF, 1972b. p. 7-11. (Bibliothèque de Philosophie Contemporaine)., p. 10). Em outro artigo, “La psychologie de la raison”, publicado em 1939, mas texto de uma conferência apresentada no ano anterior, Bachelard foi ainda mais claro:

Essa tese vem instalar a razão na crise, vem provar que a função da razão é a de provocar as crises e que a razão polêmica, que Kant localizou em um papel subalterno, não pode deixar por muito tempo a razão arquitetônica entregue às suas contemplações. Nós deveremos, então, ascender a um kantismo aberto, a um kantismo funcional, a um não kantismo, no estilo mesmo em que falamos de uma geometria não euclidiana. Essa, eu creio, é a mais bela homenagem que podemos fazer à filosofia kantiana, ao provar, por essa extensão, que ela é suscetível de uma tradução moderna para passar da estrutura à função. (Bachelard, 1972BACHELARD, Gaston. L’actualité de l’histoire des sciences. In: BACHELARD, Gaston. L’engagement rationaliste. Paris: PUF, 1972. (Bibliothèque de Philosophie Contemporaine).a, p. 27-28)

Trata-se, portanto, de um movimento de inversão que Bachelard pretende realizar na filosofia kantiana, ou seja, “passar da estrutura à função” mostrando que é a ciência, em sua história viva, que determina o que é a razão e seus poderes. Isso explica os valores historiográfico e metateórico do conceito bachelardiano de “ruptura”, pois o surracionalismo é o engajamento da razão na luta que ocorre no campo das ciências pela superação dos obstáculos à “espiritualização”. Como Bachelard escreveu em A formação do espírito científico:

Com efeito, as crises de crescimento do pensamento implicam uma reorganização total do sistema de saber. A cabeça bem feita precisa então ser refeita. Ela muda de espécie. Opõe-se à espécie anterior por uma função decisiva. Pelas revoluções espirituais que a invenção científica exige, o homem torna-se uma espécie mutante, ou melhor dizendo, uma espécie que tem necessidade de mudar, que sofre se não mudar. Espiritualmente, o homem tem necessidade de necessidades. Se considerarmos, por exemplo, a modificação psíquica que se verifica com a compreensão de doutrinas como a da Relatividade ou como a da Mecânica Ondulatória, talvez não achemos tais expressões exageradas, sobretudo se refletirmos sobre a real solidez da ciência pré-relativista. (Bachelard, 1996BACHELARD, Gaston. A formação do espírito científico: contribuição para uma psicanálise do conhecimento. Tradução de Estela dos Santos Abreu. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996., p. 20)

Diagnosticar o presente, julgar o passado

Na conclusão de O materialismo racional, de 1953, seu último livro dedicado à filosofia e à história das ciências, Bachelard reafirma a convicção nas rupturas entre o conhecimento comum e o conhecimento científico: “Acreditamos, de fato, que o progresso científico manifesta sempre uma ruptura, perpétuas rupturas, entre conhecimento comum e conhecimento científico”, mas com uma condição: “desde que abordemos uma ciência evoluída, uma ciência que, por causa dessas próprias rupturas, porta a marca da modernidade” (Bachelard, 1953BACHELARD, Gaston. O materialismo racional. [1953]. Tradução de João Gama. Lisboa: Edições 70, s. d. (Textos Filosóficos, 27)., p. 207). Mas, para Bachelard, a descontinuidade na história das ciências não é cataclísmica. As teorias, mesmo aquelas em total descontinuidade, seriam comunicáveis pelos conceitos, que nos dão a primeira formulação racional de um fenômeno, a partir de onde serão construídas as teorias para explicá-lo, permitindo, inclusive, que teorias concorrentes se valham do mesmo conceito. Porém, “cada vez que um conceito é integrado num juízo ele se diversifica”, explica Bachelard sobre a dinâmica dos conceitos e a historicidade das ciências, já no Ensaio sobre o conhecimento aproximado, de 1927. “E como o conceito é obrigado a integrar-se num juízo, é um abuso de lógica que nos leva a considerá-lo como um elemento inteiro fechado sobre si, como se sua função não pudesse reagir sobre sua composição. Apresentar um conceito isolado não é pensar” (Bachelard, 2004BACHELARD, Gaston. Ensaio sobre o conhecimento aproximado. Tradução de Estela dos Santos Abreu. Rio de Janeiro: Contraponto, 2004., p. 28).

Em 1949, falando sobre a novidade radical instaurada pela Teoria da Relatividade, Bachelard explicou que, graças a ela, “a ciência experimenta, então, aquilo que Nietzsche chama de ‘tremor dos conceitos’, como se a Terra, o Mundo, as coisas adquirissem outra estrutura desde que se coloque a explicação sobre novas bases” (Bachelard, 2001BACHELARD, Gaston. O materialismo racional. [1953]. Tradução de João Gama. Lisboa: Edições 70, s. d. (Textos Filosóficos, 27)., p. 120). A expressão nietzschiana usada por Bachelard, “tremblement de concepts”, foi retirada da Segunda Consideração Extemporânea. Nessa passagem, o filósofo alemão compara o efeito devastador de um terremoto sobre as cidades ao efeito devastador do “tremor intelectual” sobre o homem, que se vê subitamente desprovido de sua tranquila certeza sobre a existência de uma realidade constante e eterna.

Embora o pensamento de Nietzsche sobre a história apresente mudanças significativas a partir de Humano, demasiado humano, nesse trecho podemos perceber o traço inconfundível da descontinuidade que também caracteriza sua filosofia. Pois a filosofia histórica de Nietzsche, ou seja, a genealogia, se opõe sobretudo à pesquisa da origem. Em suma, o que o genealogista aprende é que as coisas atuais só podem ser compreendidas a partir da sua historicidade intrínseca, que o atual tem uma história que não se confunde com a sua origem. Procedimento estranho, diz Nietzsche, à “natureza” dos filósofos até ele, pois aquilo que chama de “defeito hereditário dos filósofos”, no Humano, demasiado humano, e de “idiossincrasia dos filósofos”, em Aurora, é justamente a sua falta de sentido histórico. “Os filósofos não querem aprender que o homem veio a ser, e que mesmo a faculdade de cognição veio a ser”, explicou Nietzsche (2000NIETZSCHE, Friedrich. Humano, demasiado humano: um livro para espíritos livres. V. 1. Trad: Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2000., §2). O que o genealogista poderia nos dizer sobre a razão? “Ah, a razão, a seriedade, o domínio sobre os afetos, toda essa coisa sombria que se chama reflexão, todos esses privilégios e adereços do homem: como foi alto o seu preço! Quanto sangue e quanto horror há no fundo de todas as ‘coisas boas’!...”, disse Nietzsche em A genealogia da moral (Nietzsche, 2009NIETZSCHE, Friedrich. A Genealogia da Moral. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2009., Segunda dissertação, §3). Ou ainda, em Aurora: “Como veio a razão ao mundo? Como é justo, de maneira irracional, por um acaso. Será preciso decifrá-lo, como um enigma” (Nietzsche, 2004NIETZSCHE, Friedrich. Aurora: reflexões sobre os pensamentos morais. Tradução de Paulo César Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2004., §123).

Sabemos que, para os historiadores românticos, a “origem”, quer aparecesse como simples começo ou como causa, adquiria aspecto de mito, pois se pretendia que nela já estivesse presente toda a explicação do processo. “Entre os dois sentidos”, afirmou Marc Bloch, “frequentemente se constitui uma contaminação tão temível que não é em geral muito claramente sentida. Para o vocabulário corrente, as origens são um começo que explica. Pior ainda: que basta para explicar” (Bloch, 2001BLOCH, Marc. Apologia da história ou o ofício de historiador. Rio de Janeiro: Zahar, 2001., p. 56-57). Esse sentido, hoje vulgar, da origem é marcado nos livros de Nietzsche pelo termo Ursprung. “Glorificar a gênese”, diz Nietzsche, “é o broto metafísico que torna a rebentar quando se considera a história, e faz acreditar que no início das coisas está o mais essencial” (Nietzsche, 2000NIETZSCHE, Friedrich. Humano, demasiado humano: um livro para espíritos livres. V. 1. Trad: Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2000., §3). Como nos diz Foucault, a Ursprung determina um tipo de pesquisa que “se esforça para recolher nela [na origem] a essência exata da coisa, sua mais pura possibilidade, sua identidade cuidadosamente recolhida em si mesma, sua forma imóvel e anterior a tudo o que é externo, acidental, sucessivo”. E continua:

Procurar tal origem é tentar recolher o que era “antes”, o “aquilo mesmo” de uma imagem exatamente adequada a si; é tomar como acidentais todas as peripécias que puderam ocorrer, todas as artimanhas, todos os disfarces; é querer tirar todas as máscaras para finalmente desvelar uma imagem primeira. Ora, se o genealogista tem o cuidado de escutar a história em vez de crer na metafísica, o que ele aprende? Que por trás das coisas há “algo essencialmente diferente”: não absolutamente seu segredo essencial e sem data, mas o segredo de que elas são sem essência ou que sua essência foi construída peça por peça a partir de figuras que lhe eram estranhas. (Foucault, 2005FOUCAULT, Michel. Nietzsche, a genealogia, a história. In: FOUCAULT, Michel. Arqueologia das ciências e história dos sistemas de pensamento. Manoel Barros da Motta(org.). Tradução de Elisa Monteiro. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005b. p. 260-281. (Ditos e Escritos, II).b, p. 262)

Com Bachelard, o retorno às origens do pensamento científico, como se fosse possível encontrar a explicação necessária e contínua a todo o seu desenvolvimento, cede lugar ao problema dos novos fundamentos que legitimam a ciência após cada ruptura, particularmente, a última ruptura, aquela que instaura o presente. A ideia de uma história das ciências descontinuísta invalida todo programa de pesquisa que parta da origem para o atual, na medida em que os dois pontos não pertencem, necessariamente, ao mesmo trajeto. Se a história das ciências testemunha rupturas que distanciam cada vez mais as ciências das suas motivações iniciais, a origem dos conhecimentos nada tem a nos ensinar. O historiador das ciências deve ter a coragem de se colocar no ponto em que uma ciência demonstra sinais de inadequação, no momento em que a reforma dos conceitos impulsiona uma nova organização dos saberes. É a partir desses marcos que deve estabelecer sua cronologia. Se o conhecimento em movimento atesta séries ininterruptas de rompimento com seu passado, é preciso considerar o pensamento “em seu fluxo, quando está intimamente ligado à reflexão e longe de sua origem sensível. Só então ele tem um sentido pleno”, escreveu Bachelard. “A fonte é um mero ponto geográfico e não contém a força viva do rio” (Bachelard, 2004, p. 18).

Os comentadores costumam identificar dois conceitos distintos de ruptura na obra de Bachelard. O primeiro diz respeito à descontinuidade entre ciência e conhecimento comum; o segundo, às descontinuidades locais que afetam as ciências constituídas. Jean Gayon, entretanto, afirma que essa distinção é artificial, instituída não por Bachelard, mas por seus numerosos comentadores. Para Gayon, os exemplos prototípicos de Bachelard para a ideia de ruptura, como a Relatividade Einsteiniana ou a Teoria dos Quanta, seriam na verdade, como, aliás, toda ciência moderna, uma ruptura com o senso comum: a Relatividade mudou completamente nossa representação do movimento e os Quanta nos fizeram renunciar aos esquemas de localidade e causalidade como modelos naturais de explicação do real (Gayon, 2003, p. 99).

De fato, Bachelard dá muitos exemplos em que a ciência só pôde se firmar rompendo com os preconceitos da nossa macroperspectiva do mundo e chegou a dizer, como vimos, que “o progresso científico”, ou seja, a ciência já madura, ainda manifesta “perpétuas rupturas entre conhecimento comum e conhecimento científico”, rupturas que se apresentam inclusive no nível da linguagem. Niels Bohr, por exemplo, usou a imagem de uma gota d’água para explicar certas leis do átomo, chamando de “temperatura” o aumento de energia do núcleo graças à incorporação de um nêutron suplementar e de “evaporação” o processo de emissão de um corpúsculo. Esses conceitos, evidentemente, além de romper com a física clássica, distanciam-se da ideia que deles fazem o conhecimento vulgar: “teria grande êxito em fazer rir quem perguntasse se a física nuclear fabrica um termômetro para medir a ‘temperatura’ do núcleo atômico!”, ironizou (Bachelard, 2004BACHELARD, Gaston. Ensaio sobre o conhecimento aproximado. Tradução de Estela dos Santos Abreu. Rio de Janeiro: Contraponto, 2004., p. 18). Mas a ideia de ruptura com o senso comum, parte do trabalho de psicanálise do conhecimento objetivo, foi necessária para que Bachelard pudesse fundamentar melhor as descontinuidades das ciências.

O positivismo, embora defendesse a existência de uma grande diferença entre o conhecimento comum e a ciência, pretendia fazer sair lenta e suavemente do bom senso os rudimentos do saber científico; de Bergson, em La dialetique de la durée [A dialética da duração], Bachelard declara aceitar quase tudo, exceto a continuidade entre percepção e ciência (Bachelard, 2001BACHELARD, Gaston. La dialectique de la durée. 3ème ed. Paris: Presses Universitaires de France, 2001. (Quadrige)., p. 12); Meyerson, por sua vez, admitia que a percepção e a ciência “são funções especulativas em continuidade de esforço para a identificação do diferente” (Bachelard, 2002aBACHELARD, Gaston. Idéalisme discursif. In: BACHELARD, Gaston. Études. 2ème ed. Paris: Librairie Philosophique J. Vrin, 2002a. (Bibliotèque des textes philosophiques)., p. 48).6 6 Sobre as críticas de Bachelard a Meyerson, cf. Almeida, 2019. Mas Bachelard está preocupado com o espírito científico stricto sensu, cuja especialização implica constantes reformas nos princípios do saber. O ano de 1905 não marca somente uma grande ruptura com o senso comum, mas o surgimento do novo espírito científico, o ano em que a Relatividade de Einstein deformou “conceitos primordiais que eram tidos como fixados para sempre” (Bachelard, 1996, p. 9). Da compreensão do caráter descontínuo da história das ciências, Bachelard nos apresenta vários exemplos, cada vez mais especializados, das rupturas internas das ciências, restituindo a cada uma sua própria história.

Hevesy, no Colóquio sobre as “Trocas isotrópicas e estruturas moleculares”, realizado em Paris em 1948, diz: “para os que viveram a descoberta da radiatividade desde seus inícios, a descoberta da radiatividade artificial aparece como um milagre”. Sim, por que o cientista que vive o progresso científico intimamente não teria o direito de empregar uma palavra tão excepcional para exprimir suas impressões?

[...] Nesses momentos inovadores, a descoberta tem tão grande pluralidade de consequências que se tangencia, com toda evidência uma descontinuidade do saber. A molécula de hidrogênio, desde a tese de Heitler e London, é motivo de instrução fundamental, uma razão de reforma radical do saber, um novo ponto de partida da filosofia química. (Bachelard, 1953BACHELARD, Gaston. O materialismo racional. [1953]. Tradução de João Gama. Lisboa: Edições 70, s. d. (Textos Filosóficos, 27)., p. 256)

Para Bachelard, a história das ciências, enquanto disciplina, é uma investigação sobre a historicidade das verdades atualmente reconhecidas enquanto tais, para compreender, do ponto de vista de uma história intelectual, como foi possível o seu surgimento e, por outro lado, como elas contribuem para o aparecimento de uma nova ordem específica dos saberes a que dizem respeito. Podemos partir da ciência estabelecida, interrompida bruscamente por uma ruptura que nos obrigaria ao abandono de todos os pressupostos atuais em favor das novas estruturas necessárias à sua compreensão (mantendo, ocasionalmente, alguns conceitos que a nova ciência considere indispensáveis); outras vezes, a ciência estabelecida, diante de uma matéria que não se dobre às teorias aceitas, passa por pequenas rupturas locais e reorganizaria seus conhecimentos para dar conta dos novos problemas, retificando-se, mas mantendo suas características gerais. Permanências através das descontinuidades e descontinuidades através das longas linhas de desenvolvimento. Evidentemente, esses caminhos não são paralelos; frequentemente eles se cruzam ou se sobrepõem, mas, em ambos, as descontinuidades aparecem como local privilegiado para o historiador das ciências, seja pela própria necessidade de demarcar uma periodização, como operação deliberada, portanto, ou como o resultado de seu trabalho.

É essa historicidade própria às ciências que, para Bachelard, vai exigir do historiador das ciências um tipo bastante específico de história, uma história que julgue o passado a partir do diagnóstico do presente. Foi em 1951, no livro L’activité rationaliste de la physique contemporaine, que Bachelard apresentou suas noções de “história sancionada” e “história perimida”:

Devemos, então, compreender a importância de uma dialética histórica própria ao pensamento científico. Em suma, é preciso formar e reformar incessantemente a dialética da história perimida e da história sancionada pela ciência atualmente ativa. A história da teoria do flogístico é perimida porque repousa sobre um erro fundamental, sobre uma contradição da química ponderal. Um racionalista não se pode interessar por ela sem uma má consciência. Um epistemólogo só se interessa por ela porque encontra aí motivos para a psicanálise do conhecimento objetivo. Um historiador das ciências que se compraz com isso deve saber que trabalha na paleontologia de um espírito científico desaparecido. Ele não pode esperar ter uma ação sobre a pedagogia das ciências de nosso tempo. (Bachelard, 1951BACHELARD, Gaston. L’activité rationaliste de la physique contemporaine. Paris: PUF, 1951., p. 25)

Ainda como exemplo de história sancionada, Bachelard cita as investigações sobre os trabalhos de Black, que apesar das várias revisões determinaram os calores específicos, noção cara à Física e à Química contemporâneas. Daí a existência de “um interesse constante em conhecê-los teoricamente, em elucidá-los epistemologicamente, em seguir sua incorporação num conceito de elementos racionalizados” em imprimir-lhes, portanto, uma história sancionada (Bachelard, 1951BACHELARD, Gaston. L’activité rationaliste de la physique contemporaine. Paris: PUF, 1951., p. 25-26). Com esse modelo, Bachelard acreditava ter atribuído à história das ciências uma função maior que a mera descrição dos progressos científicos. “Bem entendida, essa história recorrente, essa história julgada, essa história valorizada não pode nem quer restabelecer as mentalidades pré-científicas”, afirmou Bachelard. A história recorrente, prossegue Bachelard, “é feita sobretudo para ajudar a tomar consciência da força de certas barragens que o passado do pensamento científico formou contra o irracionalismo” (Bachelard, 1951BACHELARD, Gaston. L’activité rationaliste de la physique contemporaine. Paris: PUF, 1951., p. 27).

A atenção à atividade científica atual é, como se vê, um traço determinante das investigações de Bachelard sobre a história e a filosofia das ciências. Esta é, aliás, a principal prescrição que Bachelard faz aos historiadores: “o historiador das ciências, para bem julgar o passado, deve conhecer o presente; ele deve aprender o melhor possível a ciência da qual ele pretende escrever a história” (Bachelard, 1972BACHELARD, Gaston. La psychologie de la raison. In: BACHELARD, Gaston. L’engagement rationaliste. Paris: PUF, 1972a. p. 27-34. (Bibliothèque de Philosophie Contemporaine)., p. 142). Era essa atenção à atualidade dos discursos científicos que, para Bachelard, garantia um estatuto diferente à História das Ciências em relação às outras disciplinas históricas e fazia do historiador das ciências um pesquisador diferente do historiador tout court. Nos seus primeiros textos, como o livro A formação do espírito científico, de 1938, quando ainda se desenhava a mutação historiográfica que uniria historiador e epistemólogo na mesma tarefa, era o problema da atualidade que determinava onde terminavam as competências de um e se iniciavam as do outro:

A história, por princípio, é hostil a todo juízo normativo. É, no entanto, necessário colocar-se num ponto de vista normativo, se houver a intenção de julgar a eficácia de um pensamento. Muito do que se encontra na história do pensamento científico está longe de servir, de fato, à evolução desse pensamento. Certos conhecimentos, embora corretos, interrompem cedo demais pesquisas úteis. O epistemólogo deve, portanto, fazer uma escolha nos documentos coligidos pelo historiador. Deve julgá-los da perspectiva da razão e até da perspectiva da razão evoluída, porque é só com as luzes atuais que podemos julgar com plenitude os erros do passado espiritual. [...] Portanto, é o esforço de racionalidade e de construção que deve reter a atenção do epistemólogo. Percebe-se assim a diferença entre o ofício de epistemólogo e o de historiador da ciência. O historiador da ciência deve tomar as ideias como se fossem fatos. O epistemólogo deve tomar os fatos como se fossem ideias, inserindo-as num sistema de pensamento. Um fato mal interpretado por uma época permanece, para o historiador, um fato. Para o epistemólogo é um obstáculo, um contrapensamento. (Bachelard, 1996BACHELARD, Gaston. A formação do espírito científico: contribuição para uma psicanálise do conhecimento. Tradução de Estela dos Santos Abreu. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996., p. 21-22)

Canguilhem, frequentemente identificado como herdeiro intelectual de Bachelard - sem dúvida aquele que mais contribuiu para a configuração do estilo historiográfico conhecido como “epistemologia histórica” - explicou que não se tratava de um desinteresse, por parte dos historiadores, pela atualidade científica, mas que Bachelard estabelecia aquela distinção a partir das diferentes “funções históricas” que, até aquelas primeiras décadas do século passado, historiador e epistemólogo atribuíam ao presente quando escreviam a história das ciências. “Em outros termos, o historiador e o epistemólogo têm em comum (ou, pelo menos, deveriam ter em comum) a cultura científica de hoje. Mas, situando-a diferentemente em suas perspectivas, eles lhe conferem uma função histórica diferente”, diz Canguilhem. “O historiador procede das origens para o presente, de forma que a ciência de hoje é sempre anunciada em certa medida pelo passado. O epistemólogo procede do atual para os seus começos, de forma que apenas uma parte daquilo que se tomou ontem por ciência se encontra em certa medida fundada pelo presente” (Canguilhem, 2002aCANGUILHEM, Georges. L’objet de l’histoire des sciences. In: CANGUILHEM, Georges.Études d’histoire et de philosophie des sciences: concernant les vivants et la vie. 2ème ed. aum. Paris: Librairie Philosophique J. Vrin, 2002b. p. 9-24. (Problemes & Controverses)., p. 179).

Assim, uma das principais transformações provocadas pela obra de Bachelard, por meio da atualização nietzschiana de um problema filosófico da modernidade, foi a transformação da função histórica da atualidade na teoria e na prática da História das Ciências. Tal perspectiva impôs não apenas novas tarefas (como o diagnóstico do presente e o julgamento do passado) para o historiador das ciências, mas também lhe apresentou novos objetos. “A história das ciências não pode ser simplesmente uma história de registros”, explicou Bachelard. “As atas das academias contêm naturalmente numerosos documentos para a história das ciências. Mas estas atas não constituem verdadeiramente uma história das ciências” (Bachelard, 1972BACHELARD, Gaston. L’actualité de l’histoire des sciences. In: BACHELARD, Gaston. L’engagement rationaliste. Paris: PUF, 1972. (Bibliothèque de Philosophie Contemporaine)., p. 141-142). Para Bachelard, a antiga história de registros, mais memória que história, que narra descobertas e coleciona nomes e datas, não tendo assumido a tarefa de diagnosticar o pensamento científico contemporâneo para fazer a sua crítica, não percebe que o progresso das ciências é um progresso racional, marcado pelo aprofundamento da coerência entre as verdades científicas, ou seja, não percebe que “o eixo central da história das ciências é claramente dirigido no sentido de uma compreensão melhorada e de uma experiência alargada” (Bachelard, 1972BACHELARD, Gaston. L’actualité de l’histoire des sciences. In: BACHELARD, Gaston. L’engagement rationaliste. Paris: PUF, 1972. (Bibliothèque de Philosophie Contemporaine)., p. 140). Bachelard conclui: “para dizer tudo o que penso, creio que a história das ciências não pode ser uma história empírica” (Bachelard, 1972BACHELARD, Gaston. L’actualité de l’histoire des sciences. In: BACHELARD, Gaston. L’engagement rationaliste. Paris: PUF, 1972. (Bibliothèque de Philosophie Contemporaine)., p. 151).

A concepção bachelardiana de progresso como um processo racional e descontínuo de refinamento dos conceitos rompeu com os diversos modelos teleológicos que organizavam a História e a Filosofia das Ciências, pois pressupõe uma razão que se dinamiza não para atingir um fim, mas apenas em função das revoluções ocorridas no interior das ciências particulares. Para Canguilhem, isso significa que o “passado da ciência” se torna uma noção vulgar, pois nem sempre corresponde ao passado de alguma ciência (Canguilhem, 2002bCANGUILHEM, Georges. Dialectique et philosophie du non chez Gaston Bachelard. In : CANGUILHEM, Georges. Études d’histoire et de philosophie des sciences: concernant les vivants et la vie. 2ª ed. aum. Paris: Librairie Philosophique J. Vrin, 2002, p. 196-207. - (Problemes & Controverses)., p. 13): engana-se quem acredita que a Alquimia explica a Química; e podemos mesmo dizer que havia Física, tal como a compreendemos hoje, antes do século XIX? Essa perspectiva do progresso científico problematiza o tempo da História das Ciências, pois, segundo Bachelard, se “a temporalidade da ciência é um crescimento do número das verdades, um aprofundamento da coerência das verdades”, e a “história das ciências é a narrativa deste crescimento, deste aprofundamento” (Bachelard, 1972BACHELARD, Gaston. L’actualité de l’histoire des sciences. In: BACHELARD, Gaston. L’engagement rationaliste. Paris: PUF, 1972. (Bibliothèque de Philosophie Contemporaine)., p. 148), o historiador que pretender escrever de fato a história positiva de uma ciência deverá situar-se na modernidade dos seus conhecimentos, para identificar, no passado, o que realmente pertence à sua história e o que há de nocivo e fecundo no seu desenvolvimento. Para a História das Ciências tal como formulada por Bachelard, a consciência de modernidade e a consciência de historicidade são rigorosamente proporcionais.

Alexandre Koyré comentou essa atitude do historiador das ciências: “É que o historiador projeta na história os interesses e escalas de valores de seu tempo”, afirmou. “E é a partir das ideias de seu tempo - e das suas próprias - que ele empreende sua reconstrução. É justamente por isso que a história se renova e que nada muda mais rápido que o imutável passado” (Koyré, 2003KOYRÉ, Alexandre. Perspectives sur l’histoire des sciences. In: KOYRÉ, Alexandre. Études d’histoire de la pensée scientifique. Paris: Gallimard, 2003. p. 390-399. (Tel, 92)., p. 392). Mas, para Bachelard, essa projeção de valores sobre o passado significa que o historiador só pode escrever uma história do presente quando toma por objeto uma ciência madura. Essa precaução é fundamental para o sucesso da história das ciências recorrente. O novo modelo de história das ciências preparado por sua epistemologia só é possível na era do novo espírito científico, quando os valores racionais que permitem julgar o passado, segundo Bachelard, já estavam bem definidos. Seria preciso outro artigo para apresentar as reflexões de Bachelard sobre os objetos e fontes para essa nova concepção de História das Ciências. Por enquanto, basta entendermos que, ao fazer com que a atualidade deixasse de ser o telos para se tornar o ponto de partida da pesquisa histórica, Bachelard fez da história das ciências uma - palavras suas - “história intelectual julgada” (Bachelard, 1953BACHELARD, Gaston. O materialismo racional. [1953]. Tradução de João Gama. Lisboa: Edições 70, s. d. (Textos Filosóficos, 27)., p. 105)7 7 Na mesma página: “Comme nous les disions dans notre dernier livre, L’activité rationaliste de la physique contemporaine, nous sommes conscients de notre histoire intellectuelle jugée, dès que nous formons notre savoir le long d’un progrès de la connaissance scientifique. En particulier, nous gardons la marque de toutes les révolutions de culture que nous devons réaliser en assimilant le savoir scientifique moderne”. a partir do presente, seguindo o modelo nietzschiano da wirkliche Historie.

Em L’activité rationaliste de la physique contemporaine, quando Bachelard articulou o debate sobre as relações entre maturidade e modernidade por meio dessa reflexão sobre a “atualidade”, a figura de Nietzsche se impôs novamente:

O ponto de vista moderno determina, então, uma nova perspectiva sobre a história das ciências, perspectiva que põe o problema da eficácia atual dessa história das ciências na cultura científica. Trata-se, de fato, de mostrar a ação de uma história julgada, uma história que se impõe a tarefa de distinguir o erro e a verdade, o inerte e o ativo, o nocivo e o fecundo. De uma forma geral, não podemos dizer que uma história compreendida já deixa de ser história pura? Em história das ciências, é preciso necessariamente compreender, mas também julgar. É mais verdadeira na história das ciências que em qualquer outro lugar essa opinião nietzschiana: “É apenas pela maior força do presente que se deve interpretar o passado”. A história dos impérios e dos povos tem por justo ideal a recolha objetiva dos fatos; ela exige do historiador que não julgue e, se o historiador impõe os valores de seu tempo à determinação dos valores de tempos já idos, nós o acusamos, e com razão, de seguir o “mito do progresso”. Mas eis aqui uma diferença evidente: para o pensamento científico, o progresso é demonstrado, ele é demonstrável, sua demonstração é um elemento pedagógico indispensável para o desenvolvimento da cultura científica. Dito de outra forma, o progresso é a própria dinâmica da cultura científica, e é essa dinâmica que a história das ciências deve descrever. (Bachelard, 1951BACHELARD, Gaston. L’activité rationaliste de la physique contemporaine. Paris: PUF, 1951., p. 24)

Para Bachelard, toda cultura científica deve começar por “uma catarse intelectual e afetiva” e somente pelo conhecimento da atualidade é que podemos “oferecer à razão razões para evoluir” (Bachelard, 1996BACHELARD, Gaston. A formação do espírito científico: contribuição para uma psicanálise do conhecimento. Tradução de Estela dos Santos Abreu. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996., p. 24). A opinião nietzschiana, extraída da Segunda Consideração Extemporânea, que Bachelard corretamente avalia como determinada pelo “ponto de vista moderno” e adota como sua, implica que a história das ciências não pode ser escrita como qualquer outra, desde que se espere dela mais que o anedotário das descobertas científicas: a nova perspectiva de progresso exige do historiador a criação de juízos de valor sobre o passado, e esse valor é o grau de abstração, o racionalismo das ciências contemporâneas. A ideia é bem clara: não importa se o que foi dito pôde ser dito ou pensado na época em que o espírito pré-científico maravilha-se com a natureza, cheio de confiança nos seus sentidos. A partir do diagnóstico do estágio atual de nossos conhecimentos, sabemos que aquele passado era uma ilusão. Para Bachelard, a história das ciências, sendo a história das ligações racionais do saber, a história das normas que a ciência cria no seu processo de autorregulação, desnaturalizando aquilo que pensamos, tem a função de nos mostrar que podemos pensar diferente e, ao mesmo tempo, lembrar que já não podemos pensar como antes (Bachelard, 1951BACHELARD, Gaston. L’activité rationaliste de la physique contemporaine. Paris: PUF, 1951., p. 24).

Referências

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  • OWEN, David. Maturity and Modernity: Nietzsche, Weber, Foucault and the Ambivalence of Reason. London: Routledge, 1994.
  • 1
    Esse primeiro tópico do artigo parte do argumento, aqui resumido, defendido no último capítulo de Almeida, 2018aALMEIDA, Tiago Santos. Canguilhem e a gênese do possível: estudo sobre a historicização das ciências. São Paulo: Liber Ars, 2018a. (Coleção Epistemologia Histórica)..
  • 2
    Canguilhem comentou a passagem: “Essa declaração de Gaston Bachelard condenou, daí em diante e até depois da sua morte, toda tentativa de interpretação de seu pensamento para fins de confirmação de tal ou tal dialética da Ideia, da História ou da Natureza. O que Bachelard chama de dialética é o movimento indutivo que reorganiza o saber alargando as suas bases, onde a negação dos conceitos e dos axiomas é apenas um aspecto da sua generalização. A partir daí, Bachelard chama essa retificação dos conceitos de envolvimento ou inclusão, bem como superação. Oscar Wilde disse que a imaginação imita e que só o espírito crítico cria. Bachelard pensava que só uma razão crítica pode ser arquitetônica” (CANGUILHEM, 2002, p. 196).
  • 3
    Do prefácio de José Thomaz Brum a Klossowski, 2000KLOSSOWSKI, Pierre. Nietzsche e o círculo vicioso. Rio de Janeiro: Pazulin, 2000., p. 8: “Com Bataille, Klossowski participa da fundação do famoso Collège de Sociologie e, sobretudo, do nº 2 da revista Acéphale, de janeiro de 1937, que se intitula ‘Nietzsche et les fascistes - une réparation’. Neste número importante, Klossowski, Jean Wahl, Bataille e outros defendem veementemente Nietzsche de sua recuperação pela ideologia fascista”. Antes, em 1935, Klossowski, ao lado de Bataille e André Breton, brevemente reconciliados após a dissolução da revista La Revolution surrealiste no final dos anos 1920 - que opôs a Association, de Breton (que havia se filiado ao Partido Comunista, com outros importantes surrealistas), e o Cercle Communiste Démocratique, de Bataille -, fundaram o efêmero movimento surrealista anti-stalinista Contre-Attaque (Union de lutte des intellectuels révolutionnaires), que faz parte da história do encontro (ou choque) entre Marx e Nietzsche na filosofia francesa, dissolvido em função das contradições internas entre um projeto de crítica trotskista, por parte de Breton, e outro voltado para uma estética de si, com Bataille.
  • 4
    Revista editada por Louis Aragon, Tristan Tzara, Roger Caillois e Jules Monnerot. A esse respeito, cf. Caws, 1966CAWS, Mary Ann. Surrealism and the literary imagination: a study of Breton and Bachelard. Berlin: Mouton, 1966. (Studies in French literature, 12)..
  • 5
    Os exemplos citados, Adresse au Pape, de Antonin Artaud, Lettre aux Recteurs des Universités Européennes, de Artaud e Michel Leiris, e Lettres aux Médecins-chefs des asiles de fous, de Robert Desnos e Théodore Fraenkel, foram publicados no nº 3, de 1925, de La Révolution surrealiste, intitulado “1925: Fin de l’ère crétienne”.
  • 6
    Sobre as críticas de Bachelard a Meyerson, cf. Almeida, 2019ALMEIDA, Tiago Santos. Pensar o tempo para construir um método: a descontinuidade histórica em Gaston Bachelard. Revista de Teoria da História, Goiânia, v. 21, n. 1, 2019..
  • 7
    Na mesma página: “Comme nous les disions dans notre dernier livre, L’activité rationaliste de la physique contemporaine, nous sommes conscients de notre histoire intellectuelle jugée, dès que nous formons notre savoir le long d’un progrès de la connaissance scientifique. En particulier, nous gardons la marque de toutes les révolutions de culture que nous devons réaliser en assimilant le savoir scientifique moderne”.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Out 2019
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2019

Histórico

  • Recebido
    01 Abr 2019
  • Aceito
    14 Jun 2019
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